A metamorfose de Belluschi, um "oito" que vale mais que um "dez"

Belluschi (foto ASF)

Há jogadores que têm o condão de se reinventar e de contrariar ideias feitas. Belluschi parece ser um desses casos de metamorfose radical, tendo passado a fazer parte de um reduzido lote de exemplos capazes de surpreender boa parte dos críticos (grupo em que, de resto, nos incluímos). Reconhecê-lo acaba por ser o mais justo elogio que se pode fazer a uma unidade a quem todos reconheciam muitos méritos, mas que só esta época ganhou o estatuto de fundamental e talvez até de imprescindível.

Qual libélula que de um dia para o outro ganhou asas, o argentino desenvolveu-se e deixou de ser um "dez" que, por força do desenho táctico (4x3x3), tinha de jogar a "sete" ou a "oito", com tudo o que isso acarretava em termos de prejuízo para a equipa como para ele próprio. Hoje, Belluschi conserva o que já o distinguia - classe pura, técnica, remate e visão de jogo. Mas acrescentou-lhe, por exemplo, sentido posicional raro e capacidade guerreira, tudo qualidades que os analistas consideravam não integrar o seu ADN. Sabe-se agora que elas estavam lá, só que camufladas e por revelar.


Não por acaso, Belluschi foi o jogador do FC Porto que mais nos surpreendeu frente ao Benfica, mesmo que a sua exibição tenha surgido na sequência de outras muito meritórias realizadas esta época. Claro que - é mais do que evidente - Hulk foi o homem do jogo, pelos golos e pelo poder desequilibrante que já lhe é reconhecido até pelos seus mais antigos detractores. Mas, independentemente dos tiros nos pés que acabaram por representar para o Benfica e para alguns dos seus principais jogadores (David Luiz, Coentrão, Aimar e, por exclusão, Saviola) as opções tácticas e o discurso de Jorge Jesus, a verdade é que Hulk limitou-se a valorizar boa parte das características que há muito o consagram como um jogador fenomenal, uma autêntica ave ara.

O mesmo se poderia dizer de Falcao, sempre eficaz e ainda mais letal quando encontra pela frente o primeiro clube português que o tentou contratar. E, obviamente, não deve ser desprezado também o mérito de André Villas-Boas, que tem contrariado os temores em torno da sua juventude com um trabalho de qualidade, uma sagacidade táctica assinalável e um discurso em que impera a confiança e a frontalidade. Tudo com uns pingos de arrogância que, pelo menos por enquanto, até contribuem para a aura mediática e vencedora.


Belluschi sempre foi visto como um médio-ofensivo, alguém que rendia claramente mais nas costas dos avançados, servindo de interface entre o miolo e o ataque. Foi assim no Newells"s Old Boys, onde deu os primeiros passos como profissional, ganhou os seus primeiros títulos e somou as suas duas primeiras e, até ao momento, únicas internacionalizações. E continuou a ser assim quando, quatro anos depois, foi chamado a ajudar a substituir Gallardo e Lucho (que se havia mudado precisamente para o FC Porto) no River Plate. As boas exibições levaram o Olympiakos a pagar por ele 7,4 milhões de euros (por metade do passe), na reabertura do mercado em 2008. Na Grécia, continuou a vender talento, mesmo que com várias intermitências exibicionais, jogando a "dez". Foi também no Pireu que teve a sua primeira experiência feliz frente ao Benfica, derrotado por 5-1, em 2008/09. Essa tendência manteve-se na época passada, quando contribuiu com um golo e duas assistências para impedir que os benfiquistas fizessem a festa do título no Dragão.

As suas qualidades agradaram a Jesualdo Ferreira, que há um ano deu o aval à sua contratação como potencial substituto de Lucho, vendido ao Marselha por 17 milhões de euros. Belluschi custou cinco milhões, mas por apenas metade do passe, continuando o restante a pertencer ao empresário israelita Pina Zahavi. Ficou com uma cláusula de rescisão de 30 milhões e uma outra que prolonga automaticamente o contrato em mais um ano (até 2014) caso realizasse um determinado número de jogos, entretanto já cumpridos. Refira-se que uma eventual transferência pode ser um pouco prejudicada por ainda não possuir o estatuto de comunitário.

Na época passada, Belluschi alinhou em 27 das 30 jornadas do campeonato, quase sempre a titular. Marcou quatro golos, mas esteve longe de conseguir afastar o sentimento de orfandade pelo compatriota Lucho. Essa foi, de resto, uma das razões apontadas para o menor rendimento e para a época fracassada que levou à saída de Jesualdo. Durante o defeso, alguns jornais chegaram a aventar a possibilidade de Belluschi receber uma guia de marcha idêntica às que tinham sido entregues a Tomás Costa e Valeri.


Até por isso, não deixou de ser sintomático que Villas-Boas tenha apostado em Belluschi desde a primeira hora. Fê-lo mesmo contra a expectativa dos adeptos, crentes de que esta seria a época da afirmação definitiva de Rúben Micael. E continuou a fazê-lo mesmo depois de Pinto da Costa ter provado por que há muito dizia que Moutinho era um jogador à FC Porto... Aqui há que dar mérito ao técnico portista. Ele percebeu, melhor e mais rápido do que todos nós, que Belluschi tinha predicados que estavam ocultos e à espera de serem desvendados.

Outro exemplo possível da capacidade de aproveitamento dos recursos disponíveis é o romeno Sapunaru. De totalmente desacreditado, o romeno passou num ápice a aposta principal nos jogos de maior grau de dificuldade, numa rotação com Fucile que é um dos exemplos possíveis da inteligente gestão que André Villas-Boas tem sabido fazer.


A transfiguração de Belluschi já tinha sido patente em Coimbra. O pantanal em que se tinha transformado o relvado não impediu o argentino de se manter à tona da água e de terminar como um dos melhores em campo. De resto, Belluschi segue surpreendentemente como o portista que conseguiu mais recuperações de bola (81) nas dez jornadas do campeonato, claramente à frente de João Moutinho (65). Esta sua nova faceta já tinha começado a ser notória no termo da época passada, quando foi quem mais correu na final da Taça de Portugal.

Os jogadores sul-americanos melhoram substancialmente o rendimento após o segundo ano na Europa. Belluschi chegou a Portugal após vários anos na Grécia, mas pode também estar a beneficiar de uma primeira fase de adaptação às singularidades do futebol português. Mas, mais importante do que isso, foi certamente o facto de ter passado a jogar ao lado de Moutinho, cuja inteligência táctica e posicional contribui para que tudo funcione com maior harmonia em seu redor.


Belluschi já foi deixando algumas explicações para a sua metamorfose. Por um lado, reconhece ser "mérito da equipa e do treinador", que o libertou e lhe deu confiança. Nesse ponto, vale a pena acrescentar uma passagem de uma outra entrevista em que diz que o FC Porto é agora uma equipa mais parecida com o Barcelona na forma de jogar, o que, depreende-se, beneficia as suas características. Mas onde Belluschi deve mesmo ter acertado na mouche foi quando afirmou: "É mérito meu também, que me propus estar melhor e trabalhar mais do que na época passada". Nota-se.

Jesus merece algum crédito
Quem se apressou a pedir a cabeça de Jorge Jesus está a cometer um disparate tão grande como aqueles que, ainda há poucos meses, não hesitavam em rotular o treinador do Benfica como o melhor português, à frente, até, imagine-se, de José Mourinho. Os segundos ficaram inebriados com as exibições e as vitórias conseguidas durante breves dez meses, esquecendo-se que o saldo de uma carreira é muito mais do que isso. Mas quem já quer ver Jesus pelas costas está a cometer um pecado idêntico, vendo agora apenas manchas num treinador que está longe de ser perfeito, mas que já mostrou mais do que o suficiente para merecer algum crédito. Falhou estrondosamente no Dragão? É verdade. Mas mais importante do que isso seria tentar entender por que razão o Benfica não é bicampeão há 27 épocas. As situações não são comparáveis, mas, desta vez, salta à vista que o Benfica foi negligente na gestão do sucesso, sendo que isso foi verdade tanto para o treinador como para os jogadores e o próprio presidente. Nos últimos dias, os jornais desportivos enumeraram mil e um defeitos a quem ainda há pouco tempo tratavam como "mestre da táctica". E até o dinheiro que passou a ganhar desde que Pinto da Costa o tentou "raptar" serve para a criação dos cenários que levarão à sua demissão. É assim o futebol, mais volúvel até do que as taxas cambiais.

Texto de Bruno Prata, Público

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